O QUINZE

Quando ela entrou pelas Arcadas da Casa de Cultura Laura Alvim ouviu o som da valsa. O baile de debutantes do Salão Carioca de Humor, comemorando seus 15 anos, já havia começado. Percebeu Chico Caruso - o artista homenageado - num fraque de abacaxi, com o lápis e a batuta na mão, regendo os músicos.

A valsa era cativante e quando o elegante Lan a tirou para dançar ela se entregou ao ritmo. Bailava, bailava, nos braços de um, entrelaçada com outro, com Ziraldo, com Henfil, com Fortuna, com Nássara, rodopiava, rodopiava, e a luz mudou e o teto que girava se tornou distante embora igual e as pessoas que passavam por ela trajavam roupas antigas e solenes
e ela ouviu a voz de Laura Alvim dizendo
"Vou transformar a casa em que vivo desde os quatro anos - e onde meu pai viveu seus 14 anos de martírio - numa fundação. No terreno ao fundo, construirei uma galeria de arte, com teto de abóboda, luzes indiretas e bancos de sacristia. No andar de cima um teatro. Conferências, cursos de arte, recitais, músicas de câmara e balé serão apresentados. Um ateliê semelhante aos de Paris será cedido aos pintores pobres. Esse centro de cultura chamar-se-á Centro de Cultura Angelo Agostini, em homenagem ao meu avô, o grande pintor da Abolição".

Viu a mulher coquete recebendo os convidados no salão suntuoso, como uma melindrosa de J. Carlos, como Pola Negri, igual à foto de Laura Alvim na parede da Casa de Cultura. Tentou alcançá-la mas se perdeu no fluxo de pessoas dançando o maxixe. Quando chegou ao balcão da varanda no terceiro andar olhou para fora e não estavam ali os prédios da orla. A praia era deserta e cheia de cajueiros e pitangueiras.

Tonta, ofegante, desceu para a sala do piano onde Paulo Caruso (ou seria o Chico?) dedilhava um blues e parou diante do quadro de uma ninfa. Na assinatura: Ângelo Agostini. Pedro Corrêa do Lago, recolocando os livros na estante, comentou: "Ele foi o maior caricaturista brasileiro do século XIX. Fundou a Revista Ilustrada, a publicação de maior sucesso no Brasil em sua época. É considerado um dos primeiros artistas do mundo a criar histórias na linguagem dos quadrinhos".

Caminhou pela galeria. "Isso tudo deve ser efeito do coquetel que o Jaguar me serviu", ela pensou. Viu os originais da retrospectiva de 2003 com as melhores charges do Chico em O Globo. Riu muito com os premiados do concurso. Esbarrou em Claudia Zarvos verificando se tudo estava o mais bonito. Eliana Caruso se aproximou já puxando conversa: "Laura Alvim, mecena das artes, foi filha de Álvaro Alvim e neta do Agostini. Ela se considerava a primeira Garota de Ipanema, pois sua família mudou-se para esta casa em 1913, fugindo de uma epidemia de tifo. No colégio tinha o apelido de Petite Voltaire por seu gênio irreverente e contestador. Darcy Ribeiro a considerava a Leila Diniz dos anos 20, pelo seu comportamento arrojado".

"Seu grande sonho era o de transformar esta casa onde morava, de frente para o mar de Ipanema, em um centro dinâmico de cultura. Um pouco antes de morrer, em 1984, preocupada em não realizá-lo, chama sua amiga Fernanda Montenegro, que jura concretizá-lo. E Laura então lhe diz: -'Agora eu acredito'. Fernanda sugere a doação para o Estado, que é viabilizada por Darcy Ribeiro, então Secretario de Cultura . Nesse mesmo ano, tendo Darcy, Fernanda e Mariana Alvim (irmã) como testamenteiros, Laura Alvim doa sua casa ao Governo do Estado, que desenvolve desde a sua inauguração uma programação cujo objetivo permanece: a integração do fazer artístico e do lazer cultural. Cumpriu-se a vontade de Laura."

Ricky Goodwin, laptop no colo, digitava o que ia dizendo para a personagem do seu texto: "As dificuldades de se fazer um salão de humor no Brasil são tantas que deveria ser como vida de cachorro - cada ano vale por cinco. O Carioca hoje teria 75 anos. São raros os festivais que conseguem emplacar quinze edições. Hoje o Carioca e o Piracicaba são os eventos de humor mais importantes da América Latina. Mas ele está mais remoçado que nunca, retomando este ano a grandiosidade que tinha nas suas primeiras edições, com ciclo de debates, espetáculos musicais, peças de teatro, filmes, programas de TV, tudo ligado pelo Humor. O Espaço dos Correios e a Casa França-Brasil também estão participando, apresentando exposições no Centro da cidade."

Seu celular tocou. Ela atendeu e era Eliana. "Olha só quem vai estar se apresentando no teatro: Tim Rescala, Macalé, Martinho da Vila, Jaguar, Lan, Moacyr Luz, Osmar Milito, Grelo Falante, Conga a Mulher Gorila, Subversões, Os Optimistas, Mu Chebabi, Eduardo Wotzik, Cecil Thiré, Nós na Fita, a banda do Veríssimo, a banda do Reinaldo, a banda dos Carusos..."

Ricky redigiu um e-mail que ela leria alguns dias depois: "Reunimos um time de convidados internacionais de primeiríssima grandeza - Sábat (Argentina), Pat Oliphant (EUA), Antonio (Portugal) e Steve Bell (Inglaterra). Além de 17 artistas de toda parte do Brasil". Pois naquele momento sua empolgação era outra, diante de uma cena histórica: o acadêmico Arnaldo Niskier caindo no samba numa roda de bambas comandada por Aldir Blanc.

Quando ela, cansada e feliz, saiu da Casa de Laura Alvim era noite, mas o sol vermelho e belo se punha por trás do Morro Dois Irmãos derramando raios pelas praias de Ipanema e Leblon. As pessoas na areia aplaudiam. Encontrou Millôr Fernandes caminhando na calçada de pedrinhas portuguesas e ele sorriu e disse: "O Rio de Janeiro continua rindo". Ela mergulhou no mar.

Um texto de Ricky Goodwin & todos que ajudaram a fazer o Salão Carioca.