Versão nova da Pietà na cidade sem Deus

Em recente comentário na CBN, espantei alguns ouvintes declarando que não havia visto o filme "Cidade de Deus" nem pretendia vê-lo, a menos que surgisse uma imposição profissional que me obrigasse a isso. Em Gramado, não faz muito, vi alguns filmes que nunca teria visto por vontade própria.

Conheço este tipo de reclamação. Os que gostam de filmes violentos acusam os que não gostam de avestruzes, que mergulham a cabeça na areia para fugirem da realidade. Desejam um mundo cor-de-rosa, com flores e bichinhos à Walt Disney cantando a "Dança das Horas", de Ponchielli, ou a "Valsa das Flores", de Tchaikovski.

O argumento que os cultores de filmes assim brandem contra os alienados que não gostam de porrada nem de tiros no cinema e na vida real é antigo e boçal: não adianta fechar os olhos à dura realidade de um mundo cruel, de uma sociedade violenta, responsável pela criação dos monstros que nos matam, nos assaltam, nos estupram etc. etc. Este tipo de escapismo -negar a realidade que nos circunda- é uma das causas da própria violência.

Acontece que, queiramos ou não, somos consumidores e muitas vezes vítimas dessa realidade, não precisamos estetizá-la nem maquiá-la de obra de arte, com boa iluminação, boa interpretação, boa produção, enfim. Ela é melhor -se é que a violência pode ser melhor e mais real- na vida diária que vivemos. Mais emocionante até. Não tem a pretensão moral e didática de condená-la nem de torná-la emblemática. Ela existe realmente, produzida sem o patrocínio de banco ou de órgão péblico, não começa nem acaba quando sentamos na sala dos cinemas. Esta violência é que nos devia ensinar alguma coisa e motivar a sociedade seriamente, e não culturalmente, muito menos artisticamente.

Para dar o exemplo pessoal. Um cara passou pela avenida em que moro, sem ter nada o que fazer, deu um tiro na porta de vidro da portaria. Por acaso, o porteiro estava abaixado, arrumando uns embrulhos no chão. Se estivesse em sua posição habitual teria levado um tiro de 45.

Um colega de imprensa, demitido há tempos pelo corte de despesas (outra violência rotineira que nos ameaça), comprou um pequeno sítio perto de Araruama, onde tinha limoeiros e algumas galinhas de subsistência. Foi atacado por três garotos, a pauladas. O mais velho tinha 21 anos. Roubaram-lhe algumas galinhas e o deixaram morto, a cabeça esfacelada pelas pauladas.

Não vi isso no cinema. Como não vi em nenhum museu, em nenhuma casa de espetáculos, a versão século 21 da Pietà, que Michelangelo espalhou em Roma, Florença e Milão.

Não é a menina branca, branca como o mármore de Carrara, segurando o corpo crucificado do seu filho homem -sempre me impressionou, na Pietà romana, a menina-mãe segurando o corpo do filho mais velho do que ela, adulto e sacrificado.

Não precisei ir a Roma, Florença ou Milão para ver dor maior e mais verdadeira. Uma de minhas empregadas, que me atende nos fins de semana, negra, de grande dignidade, estava lavando a louça quando o telefone a chamou. Era uma ligação a cobrar: o marido, aos soluços, comunicou-lhe que haviam matado o filho énico, de 18 anos. Um amigo dele, de 16, desentendeu-se com o rapaz por causa de um rádio portátil, a pilha se gastara, o aparelho fora devolvido com a bateria pifada, motivo mais do que suficiente para o tiro, para o tiro não, para os cinco tiros que o mataram.

Eu entrei na cozinha no momento em que ela recebia a notícia. Olhou para mim, quer dizer, desviou o rosto em minha direção, mas nada viu. Fosse eu o papa, o Dalai Lama, um tigre, um anjo ou um demônio, ela não me veria. Não veria nada, tentando lá dentro compreender o que acontecera com o filho, o que acontecera com ela, o que estava acontecendo neste mundo que alguns dizem ser de Deus, um Deus que deixa a bestialidade humana de um amigo matar o amigo por causa da pilha gasta de um rádio portátil.

Não houve choro nem ranger de dentes. Era uma dor muito verdadeira para ser repartida com o desespero. Eu a amparei como pude, custei a entender o que estava havendo, e, quando entendi, me lembrei das Pietàs de mármore que vi por aí, nos museus e nas igrejas do mundo.

O coração dela batia forte dentro do peito. Não era um peito de Carrara, compactado, mas um peito humano, feito de carne mesmo. Carne igual à minha, igual à de todos nós, éltima geração de uma carne inicialmente feita de barro por um Criador de Todas as Coisas.

Encurtando a história, tão curta história apesar de tudo, que não daria um flash de 30 segundos numa tela de cinema e TV: a vida continuou, para ela, para o marido, para mim, para a polícia -que consolou os pais da vítima dizendo que a vida é assim mesmo, está tudo perdido.

Vida que continuou a girar em cada casa, sem necessidade de um complicado aparelho estereofônico, éltima geração também, de uma indéstria feita de tapes e chips, produzida com o patrocínio do refrigerante que faz bem e habilitada a ganhar um prêmio da Academia de Hollywood, numa cerimônia que o Zé Walter descreverá como a maior festa do século.

- Carlos Heitor Cony
Folha de Sâo Paulo, 01/11/02